Revisitar nossa história pode ajudar a entender o que faz do Brasil o 3º país em consumo de produtos do gênero. Na primeira parte deste artigo, vamos entender a relação entre a percepção da beleza e a cultura desde o descobrimento do Brasil através do olhar da historiadora Mary Del Priore.
A primeira menção à beleza da mulher brasileira acontece já na “certidão de nascimento” do país: a famosa carta que Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei de Portugal sobre o descobrimento. “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”, escreveu o moço, em 1500 – também sem vergonha alguma, aliás, de relatar o que viu.
Em meio à popularização do cinema e de mídias como o rádio e as revistas, no entanto, e muito mais adiante, nos anos 1950, que o concurso de Miss Brasil toma a forma que conhecemos hoje. Mas o que nos levou a esse momento? E o que é que nos fez, ao longo do caminho, distinguir o “feio” do “belo” nos corpos das brasileiras? Autora de mais de 30 livros, dentre eles “História das Mulheres no Brasil” e “Corpo a Corpo com a Mulher”, a historiadora Mary Del Priore esclarece e elucida as respostas para essas questões.
Entre Pero Vaz e D. João – Do século XVI ao XIX
“Na carta considerada fundadora da história do Brasil, já tem um conceito de beleza feminina introduzido”, explica Del Priore. “Pero Vaz comenta a nudez, a depilação e o fato de as índias apresentarem ingenuidade. E a nudez delas não era erótica em si – já que, na época, era vista como sinônimo de pobreza -, mas, na leitura do português, aquilo consagrava a elas uma pureza”, conta.
Entre o descobrimento no século XVI e o século XIX, vários dos viajantes estrangeiros que exploraram o Brasil também mencionam, em seus registros, a aparência das mulheres que encontravam pelo caminho. Em todo esse período, no entanto, a beleza feminina era vista como um fator “periférico” – e não influenciava certas escolhas, como o casamento. “O trabalho e a capacidade de acumular riquezas distinguiam mais uma mulher do que a sua beleza física”, explica a historiadora. Na época, a gordura corporal era associada ao desemprego e ao ócio – o que, junto da valorização do trabalho, deixa bem evidente a maneira como eram vistas, nessa época, as mulheres gordas.
Alguns aspectos essenciais à noção atual de beleza feminina já se faziam presentes no Brasil de então. É o caso da valorização dos cabelos compridos, por exemplo. “Nessa época, para você ter uma ideia, elas compravam cabelo de mulheres mortas quando não tinham cabelos bonitos. Eles eram oferecidos na rua, junto de produtos como frango, leite, água”, conta Del Priore.
Além dos fios longos, eram admirados também os olhos escuros e profundos. “Os olhos eram considerados capazes de transmitir mensagens de amor, de ciúme… Eram a única parte do corpo que os homens conseguiam ver”, relata a especialista.
Abra-te Sésamo: o século XIX e a abertura dos portos
Pode ser que você não lembre tão bem das aulas de história, mas Mary Del Priore te explica: em 1808, fugindo de Napoleão, a família real portuguesa veio morar no Brasil. Com isso, os portos brasileiros foram abertos para navios de vários outros países. “Nessa época, há uma série de técnicas e serviços que migram para cá”, diz a especialista. Essa abertura dos portos permitiu a importação de novos tipos de produtos – dentre eles, vários itens de beleza.
Contrariamente ao que muitos acreditam, a noção de que os brasileiros herdaram seu senso de higiene dos índios não passa de um grande mito. A chegada de serviços como cabeleireiros e dentistas vindos da Europa, nessa época, é o que começou a mudar os hábitos que se tinha antes por aqui. “Tudo isso vai alterar a percepção da mulher brasileira sobre sua higiene. Até então, não chegava água encanada nos domicílios e não se tomava banho todos os dias”, conta a escritora.
Outro mito bastante difundido a respeito dos índios é que, quando os portugueses chegaram, entregaram aos nativos espelhos em troca das nossas riquezas naturais – o famoso “escambo”. De acordo com Del Priore, porém, isso tampouco é verdade. “Nos séculos XVI e XVII, os espelhos eram caríssimos até mesmo na Europa. Tiveram trocas, mas inicialmente elas foram com facas, instrumentos de trabalho e lavoura e bugigangas pequenas, como miçangas”, explica.
Aliás, falando em espelho, foi só depois da abertura dos portos que ele se popularizou no Brasil. Mas, mesmo assim, ainda fica bem longe do lugar que ocupa hoje em nossas vidas. “O espelho é uma característica do bordel, no século XIX. Lá, a mulher pode se exibir, fazer encenações. Na casa de família, nessa época, o espelho só existe na entrada e na sala de jantar, não tem em nenhum outro lugar”, conta a historiadora. Junto com o espelho, a vaidade não tinha lugar central na vida da mulher nesse período. Preocupar-se com a própria aparência era um pecado perseguido pela Igreja e condenado pela sociedade.
“Nessa época, a avaliação da mulher sobre si mesma estava sempre no olhar do outro. Esse olhar é centrado por outros critérios [fora a beleza]. Estavam interessados na família ser rica, ter terra, escravos; na educação ser de menina católica, religiosa”, afirma a especialista.
(continua em 10/10/2016)
Fonte:
https://goo.gl/DFVLKH
Esta matéria foi publicada primeiro no site M de Mulher da Abril Editora.